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Três gerações e contando: trajetórias da cinefilia portoalegrense

(Matéria produzida para o 3×4, revista da disciplina de Jornalismo Impresso III da Fabico-UFRGS).

Ainda que sua configuração tenha se alterado bastante ao longo das décadas, com as salas de cinema se mudando das calçadas para os multiplexes dos shoppings, Porto Alegre tem pouco a reclamar – ao menos, no que diz respeito ao número de salas disponíveis. Comparada com outras cidades, a capital gaúcha aindaconta com um significativo circuito alternativo. Logicamente, se retornarmos ao passado e à eferevescência cultural da década de 1960, encontramos em Porto Alegre não apenas uma robusta gama de opções, mas também uma crítica que, sem ser pedante nem rasteira, busca o melhor do valor artístico – seja na linguagem vanguardista de Jean-Luc Godard ou em um leve musical com Gene Kelly.

Entre o final dos anos 50 e início dos 60, o Clube de Cinema de Porto Alegre começa a render seus maiores frutos: além de Goida e de Hélio Nascimento, surgem nomes como Enéas de Souza e Jefferson Barros e, poucos anos mais tarde, José Onofre e Luiz Carlos Merten. Essa nova geração, bastante marcada pelo cinema norte-americano, contribuiu com importantes debates com a “velha crítica”, representada por P.F. Gastal e Jacob Koutzii. Estes davam preferência a um cinema com menos espaço comercial, alguns deles “de diretores que o tempo esqueceu”, segundo Hélio. Já os “novatos” tinham influência das ideias da célebre revista Cahiers du Cinéma, indicando a importância de cineastas até então subestimados, dentre os quais Alfred Hitchcock é o exemplo favorito: “Não é só uma pessoa ir ver um filme do Hitchcock e dizer ‘ah, levei susto’, tinha que mostrar que aquilo não era só sustos.”, diz Hélio. “Pra nós isso é que era importante. Pro Gastal parece que não era tanto”.

E Deus Criou a Mulher (Et Dieu… Créa la Femme, 1956)

A formação dessa vibrante cinefilia começa alguns anos antes, com a fundação do Clube de Cinema de Porto Alegre em 1948 por P.F. Gastal – que, conquistando um importante espaço cultural na cidade, logo ganhou sua contraparte: o Cineclube Pro Deo, fundado em 1953 pelo crítico Humberto Didonet, do Jornal do Dia (ligado à Igreja Católica). Ainda que houvesse um consenso entre os grupos na busca pelo melhor cinema, Goida lembra que o caráter conservador do Pro Deo rendeu ao Clube de Cinema o apelido irônico de “Pro Demo” – não só por seu caráter laico, mas também por grande parte de seus membros se identificarem com os ideais de esquerda. Previsivelmente moralista, era comum o Pro Deo condenar filmes mais sexualmente ousados, como E Deus Criou a Mulher, no qual Roger Vadim lançou uma jovem Brigitte Bardot como inquestionável sex symbol; e A Doce Vida, clássico de Federico Fellini onde Marcello Mastroianni seduz quase todas as mulheres do filme.

E, claro, em uma época de tanta oxigenação no mundo dos filmes – a Nouvelle Vague francesa, o Cinema Novo brasileiro, o Free Cinema britânico e o Novo Cinema americano -, havia um fértil terreno para que as salas porto-alegrenses explorassem os diferentes nichos, tanto as novidades quantos os clássicos: as sessões da meia-noite do Cine Vogue, com destaque para o neo-realismo italiano; o Cine Ópera, importante difusor da Nouvelle Vague; o Cinema Cacique, que promovia festivais anuais de cinema japonês. Apesar de muitos desses filmes serem exibidos sem legendas, atraíam um público considerável (um contraste revelador com os dias atuais, em que se prefere dublagem a acompanhar as legendas).

O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925)

Antes do fatídico 31 de março de 1964, Porto Alegre foi palco de importantes eventos cinematográficos. Um dos grandes destaques foi o Ciclo de Cinema Russo e Soviético, em 62, onde (apesar das críticas do Pro Deo) a primeira exibição de O Encouraçado Potemkin excedeu os 2.000 lugares do Auditório da Reitoria da UFRGS (“Imagina, depois de dez, quinze anos de leitura sobre Potemkin, tu vai lá e vê o filme, é outra coisa.”, comenta Hélio). Ainda assim, o espectro censor já existia: um que por pouco não foi banido foi Rio 40 Graus, que teve sua importância ressaltada por Gastal ao trazer a Porto Alegre o filme e seu diretor, Nelson Pereira dos Santos. Após o golpe militar, a censura é ampliada, fazendo com que Gastal cancele os ciclos de cinema seguintes. Com a decretação do A.I.-5, em 1968, dezenas de filmes demorariam mais de dez anos para chegar aos projetores, em especial por sua ousadia política ou sexual.

A Vida de Brian (Monty Python’s Life of Brian 1979)

Mas essa geração cinéfila encontrou seu jeito de burlar a censura. Goida e Hélio comentam que a proximidade de Porto Alegre com Montevidéu, onde a censura era mais branda até mesmo no regime militar daquele país, possibilitou que os críticos gaúchos conferissem produções barradas no Brasil, como a Trilogia da Vida, de Pier Paolo Pasolini; Z, de Costa Gavras; O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci; A Aventura, de Claude Lelouch; e Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (ainda que este viesse acompanhado de bolinhas tapa-sexo). Nem mesmo Woody Allen se safou: a sátira política de Bananas e o humor picante de Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha Medo de Perguntar), tiveram que ser conferidos em telas uruguaias.No entanto, brechas ocorreram: Jesus Cristo Superstar, de Norman Jewinson, e A Vida de Brian, do Monty Python, estrearam sem grandes problemas, apesar da irreverência com a religião. No campo político, O Assassinato de Trotsky, de Joseph Losey, passou pela censura após os militares deduzirem: “é uma briga entre comunistas, melhor passar pra verem como é ruim”, explica Hélio. “E o Trotsky morre no final.”, acrescenta Goida com uma risada.

Chegando aos anos 80, a ditadura agonizava, mas os cinéfilos ganhavam novas opções. A principal delas foi, sem dúvida, o Cine Bristol, que, com Romeu Grimaldi à frente das programações, organizou vários ciclos de diretores, atores e gêneros. Essa variedade de opções fez do cinema o favorito do Cineclube Humberto Mauro, que abrigou jovens nomes como Jorge Furtado, Carlos Gerbase, Giba Assis Brasil e Ana Luíza Azevedo antes que estes fundassem a Casa de Cinema de Porto Alegre. No final da década, Grimaldi foi demitido do Bristol, passando a dirigir a Cinemateca Paulo Amorim, função que exerceu até sua morte, em 1995. Por volta desta época, começa o declínio dos cinemas de calçada, com as salas migrando para os centros comerciais.

Hoje, o circuito alternativo de Porto Alegre subsiste, embora tenha perdido um certo espaço para os multiplexes cuja programação tende cada vez mais à mesmice. No entanto, certamente não existem muitas cidades que podem se orgulhar de ainda possuir espaços de apreciação da Sétima Arte tão diferenciados como o Guion Center, a Cinemateca Paulo Amorim, o Cine Bancários, e Sala P.F. Gastal e vários outros. Algo marcante para uma época em que muitos preferem dominar a tela de um DVD ao invés de serem dominados por uma tela de cinema.

Goida, pseudônimo de Hiron Goidanich, começou como crítico de cinema do jornal “Última Hora”, em 1959. Depois do fim do jornal na ditadura militar, assumiu a coluna em “Zero Hora”, posição que ocupou até sua aposentadoria, em 1995. Continua um membro ativo do Clube de Cinema de Porto Alegre até hoje. É autor de “Nas Primeiras Fileiras” e “Enciclopédia dos Quadrinhos” (que, em sua 2ª edição, é co-escrita com André Kleinert). (Foto: Sarita Reed)

Hélio Nascimento começou a escrever sobre cinema no “Jornal do Comércio” em 1961, cargo que ocupa até hoje. Também foi produtor e apresentador do programa “Cinema de Segunda a Segunda” na Rádio da UFRGS de 1972 a 1999. Assina como autor os livros “Cinema Brasileiro” e “No Reino da Imagem”. (Foto: Sarita Reed)